Resumo
Desde a redemocratização, o sistema político brasileiro tem se estruturado em torno de um presidencialismo de coalizão, caracterizado por uma constante negociação entre o Poder Executivo e uma base parlamentar heterogênea. Este artigo analisa o funcionamento e os desdobramentos das políticas de coalizão no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. São discutidos seus impactos na governabilidade, na formação de alianças partidárias, na troca de apoio por cargos e recursos, e nos dilemas éticos e institucionais que cercam esse arranjo político. A análise também considera os limites e desafios da prática, especialmente no contexto de fragmentação partidária e instabilidade institucional.
Introdução
A transição do regime militar para a democracia, consolidada com a Constituição Federal de 1988, marcou o início de uma nova era política no Brasil. Nesse novo ciclo democrático, o país optou por manter o presidencialismo, mas inserido em um ambiente multipartidário, no qual o Poder Executivo precisa formar alianças no Congresso Nacional para garantir a governabilidade. Esse modelo ficou conhecido como presidencialismo de coalizão, conceito amplamente difundido pelo cientista político Sérgio Abranches (1988).
Desde então, a política brasileira tem sido marcada por negociações constantes entre o Executivo e o Legislativo, com o objetivo de assegurar maioria parlamentar, aprovação de leis e estabilidade institucional. No entanto, esse modelo, embora funcional em termos formais, carrega consigo problemas estruturais, como a fragmentação partidária, o clientelismo, o loteamento de cargos e a fragilidade ideológica das alianças.
Este artigo busca compreender como as políticas de coalizão se consolidaram no período pós-redemocratização e de que maneira elas influenciam a prática política no Brasil até os dias atuais.
Desenvolvimento
1. A redemocratização e a nova ordem institucional
A Constituição de 1988 inaugurou um período de intensa participação política e liberdade institucional. Ao mesmo tempo, permitiu a proliferação de partidos políticos, com regras relativamente flexíveis para sua criação e funcionamento. Em um sistema eleitoral proporcional com lista aberta, o número elevado de partidos tornou o ambiente legislativo altamente fragmentado.
Essa fragmentação dificulta a formação de maiorias estáveis no Congresso, exigindo do presidente da República um esforço contínuo para articular uma base de apoio — normalmente composta por partidos de diferentes matizes ideológicos, unidos mais pelo interesse em ocupar espaços no governo do que por projetos comuns de país.
2. O presidencialismo de coalizão: conceito e prática
Segundo Sérgio Abranches (1988), o presidencialismo de coalizão é um arranjo no qual o chefe do Executivo precisa negociar com um Congresso multipartidário para formar uma base de apoio que lhe permita governar. Como o presidente não pode dissolver o Congresso, e este não pode destituí-lo com facilidade (salvo impeachment), cria-se uma relação de interdependência delicada.
Na prática, o Executivo costuma oferecer ministérios, cargos estratégicos e emendas parlamentares para garantir o apoio necessário às votações. Essa lógica, embora funcional para assegurar estabilidade, pode desvirtuar princípios republicanos e gerar desequilíbrios éticos e administrativos.
3. Casos históricos emblemáticos
Diversos governos democráticos pós-1988 enfrentaram os dilemas das coalizões:
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Fernando Henrique Cardoso (1995–2002) manteve uma coalizão estável com o PSDB, PFL e PMDB, utilizando articulação política e distribuição de cargos para garantir maioria no Congresso.
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Lula (2003–2010) expandiu a lógica da coalizão, trazendo partidos de centro e centro-direita para a base petista. O caso do Mensalão, revelado em 2005, mostrou os limites éticos desse modelo.
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Dilma Rousseff (2011–2016) teve dificuldades na condução política e perdeu apoio da base, o que culminou em seu impeachment — evidência do risco que a quebra da coalizão representa.
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Jair Bolsonaro (2019–) inicialmente rejeitou a política tradicional de coalizão, mas acabou cedendo à lógica do “centrão” com nomeações em troca de apoio, especialmente após 2020.
4. Os desafios da coalizão no Brasil atual
Entre os principais problemas que persistem nesse modelo, destacam-se:
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Fragmentação partidária excessiva: Em 2019, o Brasil tinha mais de 30 partidos com representação no Congresso.
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Despolitização das alianças: as coalizões são pragmáticas, muitas vezes sem identidade programática comum.
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Dependência de emendas: o orçamento secreto e as emendas de relator expuseram a fragilidade das instituições de controle e fiscalização.
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Corrupção e fisiologismo: a barganha política frequentemente ultrapassa os limites da legalidade e da moralidade pública.
Conclusão
As políticas de coalizão no Brasil, desde a redemocratização, revelam um sistema que oscila entre a necessidade de garantir governabilidade e os riscos de deformação institucional. O presidencialismo de coalizão se mostrou viável como ferramenta de articulação política, mas depende, para funcionar de maneira ética e eficiente, de reformas estruturais profundas.
A redução da fragmentação partidária, o fortalecimento dos partidos com identidade programática, o aprimoramento das regras orçamentárias e a valorização da ética pública são caminhos urgentes para tornar as coalizões instrumentos republicanos de diálogo, e não de barganha.
Somente com instituições sólidas, lideranças comprometidas com o interesse público e uma sociedade civil vigilante será possível transformar o modelo atual em um mecanismo saudável de construção democrática.
Referências Bibliográficas
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