Resumo

Este artigo discute os limites da liberdade de expressão no contexto do Estado Democrático de Direito, abordando os casos em que manifestações verbais ou artísticas deixam de ser protegidas constitucionalmente e passam a configurar abuso, discurso de ódio ou incitação criminosa. Analisa-se o equilíbrio entre a livre manifestação do pensamento e a proteção à dignidade humana, com base em fundamentos legais, decisões do Supremo Tribunal Federal e doutrina jurídica. O texto também explora a responsabilidade de atores e comediantes, destacando o papel da arte e do humor como instrumentos críticos e, ao mesmo tempo, sujeitos a limites legais quando ultrapassam a função social da liberdade artística. Conclui-se que a liberdade de expressão, embora essencial à democracia, exige responsabilidade e não pode ser usada como escudo para a violação de outros direitos fundamentais.

Introdução

A liberdade de expressão é uma das garantias mais valorizadas nas sociedades democráticas. Ela assegura ao cidadão o direito de manifestar livremente suas ideias, crenças e opiniões, sendo essencial para o exercício da cidadania, da crítica e da diversidade de pensamento. No entanto, esse direito não é absoluto. Quando a manifestação extrapola os limites do respeito à dignidade humana, da segurança coletiva ou dos direitos de terceiros, ela perde sua proteção constitucional e pode — e deve — ser punida. Este artigo discute os limites legais, éticos e sociais da liberdade de expressão, e analisa quando ela deixa de ser um direito legítimo para se tornar um abuso punível, com atenção especial ao papel de atores e comediantes no contexto da liberdade artística.

1. A Liberdade de Expressão no Estado de Direito

A Constituição Federal de 1988 assegura, no artigo 5º, inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e no inciso IX, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. No entanto, a própria Constituição impõe limites a esse direito: os incisos V e X do mesmo artigo protegem a intimidade, a honra, a imagem e a vida privada das pessoas. Ou seja, a liberdade de expressão deve coexistir com outros direitos fundamentais, em equilíbrio.

Não existe liberdade sem responsabilidade. O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que “não há liberdade de expressão sem responsabilidade” (RE 1.010.606/DF). Isso significa que discursos que ofendem, incitam a violência ou incentivam o ódio não estão protegidos pelo direito constitucional de livre expressão.

2. Quando a Fala Deixa de Ser Expressão e se Torna Crime

A fala se torna punível quando ultrapassa os limites da legalidade e da ética, atingindo diretamente direitos de outras pessoas ou da coletividade. Alguns exemplos de manifestações verbais que configuram crime segundo a legislação brasileira:

Calúnia, injúria e difamação (arts. 138 a 140 do Código Penal);

Apologia ao crime ou ao criminoso (art. 287 do Código Penal);

Racismo e outras formas de preconceito (Lei nº 7.716/1989);

Fake news e desinformação em processos eleitorais (Lei nº 9.504/1997, art. 57-H e seguintes);

Incitação à violência ou discurso de ódio, com base em decisões do STF e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Nesses casos, a liberdade de expressão deixa de ser um direito legítimo e passa a ser instrumento de ofensa, manipulação ou ataque à ordem democrática. A responsabilização jurídica não configura censura, mas sim um mecanismo de proteção dos direitos fundamentais e do pacto civilizatório.

3. Liberdade Artística: Atores, Comediantes e os Limites da Representação

A liberdade artística também está garantida pela Constituição Federal, no mesmo artigo 5º, inciso IX. Ela protege manifestações como filmes, peças teatrais, obras literárias, músicas e performances, permitindo que a arte possa provocar, criticar, denunciar e até incomodar — funções essenciais ao seu papel social.

Atores e comediantes, nesse contexto, exercem papel fundamental. É comum que obras artísticas tratem de temas sensíveis como racismo, machismo, pedofilia, intolerância religiosa ou corrupção, usando a representação ficcional como forma de denunciar problemas estruturais. Filmes como “Django Livre” (2012), “Spotlight” (2015), “O Código Da Vinci” (2006), ou mesmo séries como “The Handmaid’s Tale”, abordam temas duros com objetivo crítico. Em tais casos, os atores não devem ser punidos, pois estão inseridos em uma narrativa artística protegida constitucionalmente.

O mesmo se aplica aos comediantes. O humor, inclusive o ácido e provocativo, cumpre função histórica de crítica social e política. A comédia testa os limites do discurso e, muitas vezes, questiona tabus. No entanto, o humor também possui limites legais e éticos. Quando a piada se transforma em discurso de ódio, preconceito racial, incentivo à violência ou humilhação de grupos vulneráveis, ela pode ser punida judicialmente.

Um caso notório ocorreu com o comediante Danilo Gentili, condenado por injúria contra a deputada Maria do Rosário. O STF entendeu que, apesar da natureza satírica da fala, houve ofensa pessoal e reiterada que ultrapassou os limites da liberdade humorística.

Como bem afirma o jurista Ingo Wolfgang Sarlet, “a liberdade de expressão, inclusive sob a forma artística, não confere salvo-conduto para a prática de ilícitos” (SARLET, 2012, p. 115). Isso significa que o contexto, a intenção e o impacto da fala artística ou humorística devem ser considerados. A atuação não pode ser confundida com apologia, e a crítica não pode ser confundida com ofensa deliberada.

Em suma, atores e comediantes estão protegidos enquanto atuam em obras com finalidade crítica ou ficcional, mas podem ser responsabilizados se, fora desse contexto, propagarem discursos discriminatórios ou criminosos sob o disfarce de arte ou liberdade.

Conclusão

A liberdade de expressão é um dos pilares da democracia, mas ela não é ilimitada. Quando se torna ferramenta para ofender, agredir, incitar o ódio ou prejudicar a coletividade, deve ser regulada e, em certos casos, punida. Proteger o direito à palavra não significa tolerar o abuso da fala.

No campo artístico, é essencial preservar a liberdade de criação e crítica. Atores e comediantes não podem ser criminalizados por interpretar personagens ou abordar temas difíceis — desde que estejam inseridos no contexto de uma obra ficcional ou crítica. No entanto, a arte também exige responsabilidade, pois quando se distancia de sua função social e passa a reproduzir ou incitar preconceitos, ela deixa de cumprir seu papel transformador e passa a ser cúmplice do retrocesso.

A verdadeira liberdade de expressão floresce onde há respeito mútuo, responsabilidade coletiva e compromisso com a verdade e a dignidade humana.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 1.010.606/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 1841091/SP, julgado em 2019 (Caso Danilo Gentili).

ZANETI JR., Hermes. Liberdade de Expressão, Discurso de Ódio e a Constituição. São Paulo: RT, 2016.

MOURA, Tarcísio Vieira de Carvalho Neto. Liberdade de Expressão e Democracia: Tensões e Diálogos. Brasília: IDP, 2019.

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