Resumo

Este artigo examina aspectos sobre o Funcionalismo Público, relacionando críticas comuns ao mesmo, apresentadas por agentes políticos, imprensa e usuários de serviços públicos, com dados históricos, legais e de organismos internacionais,  buscando provocar uma reflexão embasada sobre o quanto tais críticas encontram correspondência com a realidade e sobre a existência de outras motivações além da simples defesa de serviços públicos de mais qualidade.

 

Introdução

A existência de serviços públicos civis prestados pelo Estado aos cidadãos existe, em maior ou menor grau, em todas as nações, sendo que a maior parte destes serviços é efetuada pelos chamados Servidores Públicos ou Funcionários Públicos, vinculados à Administração Pública de forma mais ampla, cujo custeio se dá através de impostos, taxas e similares. Por não haver a possibilidade de controle da qualidade dos serviços públicos através dos mecanismos da livre concorrência, já que são monopólio do Estado, sofrem críticas freqüentes sobre sua eficiência, qualidade e má administração.

Costuma faltar aos cidadãos, no entanto, informações suficientes sobre a forma de funcionamento da máquina pública, que envolve aspectos como a base legal que rege o serviço público, hierarquia, obrigações e restrições à atuação do agente público, categorias dos agentes públicos, entre outros. E tal informação se faz necessária para entender como os serviços devem ser prestados, para identificação de falhas e do descumprimento de obrigações legais, para entendimento de como efetuar denúncias, entre outros aspectos, e até mesmo para saber quais são as obrigações dos próprios cidadãos.

Para contextualizar esta realidade, serão apresentados, resumidamente, a evolução histórica do funcionalismo público, aspectos legais que regulam a sua existência, alguns conceitos de administração pública relacionados ao tema e, por fim, reflexões sobre os problemas comumente apontados pelos cidadãos ao funcionalismo público, procurando identificar possíveis causas e soluções.

 

Histórico

O chamado Serviço Público Civil decorre de uma evolução histórica paralela à evolução dos regimes de governo, havendo uma grande transformação, sobretudo na Europa, desde o declínio das administrações monárquicas, que prevaleceram até o Sec. XVII, passando pelo período de desenvolvimento da dicotomia entre a política/administrativa a partir do Séc. XVIII, e sua evolução nos séculos seguintes.

Nas administrações monárquicas trabalhavam os servos da Coroa que, sob a justiça real, administravam o patrimônio da Coroa. Durante o séc. XVIII e até séc. XIX o Estado foi se tornando progressivamente despersonalizado, com influência de eventos como a promulgação da Constituição Americana, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789, com os servos da Coroa gradualmente sendo substituídos por servidores do Estado.

Do Séc. XIX em diante se desenvolve uma nova era constitucional, com parlamentares eleitos falando pelo povo; a administração pública devendo se basear somente na lei e respeitando os direitos individuais, balanceando a autoridade (pública) e o direito (privado); e a diferenciação entre ações políticas e administrativas (dicotomia político-administrativa), exercidas respectivamente pelos agentes políticos e servidores civis (burocratas).

 

A dicotomia político-administrativa

Tradicionalmente, a administração pública foi conceituada como distinta e, por vezes, opositiva à política:

  • O conceito de política indicando a esfera em que a opinião pública é formada, os interesses sociais debatidos e confrontados, ações são efetuadas por partidos políticos, decisões são tomadas por autoridades;
  • O conceito de administração, atuando como uma peça integrada do maquinário, não movida por paixões partidárias, exercendo trabalho consultivo e técnico, zelando pelos princípios legais.

A distinção entre as duas esferas foi considerada obvia, e sua separação considerada desejável e, por vezes, indispensável. Sendo esta separação problemática em teoria e prática, no entanto,  tem contribuído fortemente para moldar e animar a administração publica nos últimos dois séculos.

Enquanto que para os políticos a estrutura da máquina pública se torna cada vez mais complexa e exigente, para os servidores civis a complexidade e tecnicalidade do trabalho se intensifica, exigindo um corpo de servidores estável e completamente dedicado, levando à necessidade de background profissional necessário a cada tipo de trabalho e de expansão de um sistema meritocrático.

Desde metade do séc.XIX, no entanto, o campo político, visando administrar os conflitos entre as duas esferas e ter sua necessidade de lealdade cooperativa e ideologicamente compatível atendida, foi invadindo a arena administrativa. Principalmente duas formas foram adotadas para alcançar este objetivo: a criação de gabinetes ministeriais para garantir a prevalência do posicionamento político sobre o administrativo, e a ocupação das altos cargos administrativos através de indicação política.

O crescimento desse desvirtuamento e abrandamento da dicotomia político-administrativa teve sua manifestação mais aguda nos regimes autoritários dos anos 1920 e 1930.

 

Evolução do Funcionalismo Público no Brasil

Pode-se dizer que o serviço público, no Brasil, teve início em 1808, com o estabelecimento da família real portuguesa no Rio de Janeiro, criando demanda de um trabalho administrativo necessário ao desenvolvimento da colônia, seguindo em consolidação após a Declaração de Independência. As funções na sociedade eram delegadas pelo imperador, podendo estas serem diretas e indiretas, havendo os chamados “cargos de confiança”.

Quando foi promulgada a Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824, esta assegurou, em seu Art. 179, inciso XIV: “Todo o cidadão pode ser admitido aos Cargos Públicos Civis, Políticos, ou Militares, sem outra diferença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”.

Na constituição de 1934, promulgada durante o governo de Getulio Vargas, em seu Art. 170, § 2º, é que foi estabelecido o critério objetivo e impessoal de seleção para os cargos públicos, definindo que “a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas, e nos demais que a lei determinar, efectuar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos” (grifo nosso). O serviço público no Brasil sofreu importante desenvolvimento a partir do ano de 1936, sendo criado o Conselho Federal do Serviço Público Civil, levando a administração pública a espelhar algumas experiências internacionais que, de certa forma, poderiam ser apropriadas para o país. Na Constituição de 1937, em seu art. 156, e na de 1946, em seu art. 186, de forma similar, o critério objetivo e impessoal foi mantido, embora o equilíbrio tenha variado durante este período conforme o maior ou menor grau prevalência da esfera política sobre a administrativa.

 

Legislação em vigor que regulamenta os Serviços Públicos Civis

A Constituição Federal de 1988, atualmente em vigor, estabelece em seu art.37 que a administração pública obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (os chamados princípios da administração pública), e que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos … ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”, excetuando as nomeações para cargo em comissão (cargo de confiança, de livre nomeação, para direção, chefia e assessoramento).

No que se refere aos aspectos disciplinares, o art.37 da C.F. estabelece penalidades para os atos de improbidade administrativa, sendo elas a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens, o ressarcimento ao erário e ação penal cabível. Pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável.

 

 

 

Regimes de trabalho no setor público

Antes de se abordar os regimes de trabalho no setor público, se faz importante uma citação sucinta sobre como se divide a administração pública, sendo:

  • Administração Direta: órgãos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário;
  • Administração Indireta: Autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista

As contratações de agentes públicos administrativos no setor público se faz em diversas categorias, conforme aplicável a cada esfera administrativa, variando significativamente as características de cada categoria. A seguir são apresentadas simplificadamente as formas de contratação conforme o contexto:

Administração Direta (órgãos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário): As contratações normalmente se dão pelo chamado Regime Jurídico Único, conforme regras da CF, do Estatuto do Servidor Público e leis específicas de cada esfera de governo. A admissão se faz por concurso público, em que o servidor público obtém estabilidade após um período probatório (experiência) de 3 anos e avaliação de desempenho. Após este período, a perda do cargo depende de sentença judicial, processo administrativo ou de avaliação periódica. Pode ou não haver plano de carreira e benefícios, definidos por cada esfera de governo.

Administração Indireta

  • autarquias e fundações: as seleções são feitas através de concurso público e as contratações podem ser formalizadas sob as regras do Regime Jurídico Único (CF+Estatuto do Servidor), como na administração direta, ou através da CLT, em que caracteriza emprego público, não estável e com demissão dependendo de critérios específicos. Pode ou não haver plano de carreira e benefícios.
  • empresa pública ou sociedade de economia mista: As contratações se fazem no regime da CLT (emprego público), com seleção através de concurso público e não há estabilidade, podendo ou não haver plano de carreira e/ou benefícios. As questões gerais são tratadas pela legislação trabalhista e regras de mercado.

 

Contratações terceirizadas (aplicável à Administração Direta e também à Indireta):

A relação de trabalho se faz com uma pessoa jurídica de direito privado que, por sua vez, se submete aos procedimentos legais de contratação (licitações, carta-convite, etc) pelo Poder Público. Esse tipo de relação contratual é mais comum no segmento da construção civil, gerenciadoras e empresas de mão de obra temporária. As relações profissionais se dão inteiramente dentro das modalidades do setor privado, atuando a PJ como intermediadora na prestação do serviço ao Poder Público.

 

 

 

Contratações sob Termos de Parceria (aplicável à Administração Direta e também à Indireta):

São contratos celebrados entre o Poder Público e Pessoas Jurídicas privadas sem fins lucrativos, enquadradas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs ou Organizações Sociais – OSs , conforme Lei nº9.790/99, fornecendo a mão-de-obra de seus funcionários. As relações profissionais se dão inteiramente dentro das modalidades do setor privado, atuando a PJ como intermediadora na prestação do serviço ao Poder Público. O Termo de Parceria, para ser firmado, depende de consulta aos Conselhos de Políticas Públicas das áreas correspondentes de atuação existentes, nos respectivos níveis de governo.

 

Problemas comumente atribuídos ao funcionalismo público

É lugar comum a reclamação sobre os problemas na prestação dos serviços públicos, seja pelos cidadãos, usuários e destinatários finais destes serviços; seja pelos meios de comunicação, que coletam e apresentam informações, porém muitas vezes sem compreensão da complexidade que envolve a questão; e até mesmo pelos próprios agentes públicos, sobretudo aqueles inseridos na esfera política do serviço público, embora ocupando espaço de maior poder e exercendo o papel de gestão e responsabilidade pelo mesmo.

Dentre os problemas atribuídos ao serviço público, provavelmente o mais apontado é o da ineficiência. Há, obviamente, atuação ineficiente por parte dos servidores, para os quais há mecanismos de solução previstos na legislação, mas a questão é muito mais ampla do que isto. Para uma melhor compreensão do problema, há que se considerar as regras rígidas a que está sujeito o serviço público, e o porquê da existência destas regras. Como citado anteriormente, o serviço público está sujeito aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Por exemplo, dentro do princípio da legalidade, enquanto que os cidadãos, em geral, podem fazer qualquer coisa que não seja proibida pela legislação, um agente público no exercício da sua função, ao contrário dos demais, só pode fazer o que está expressamente definido na legislação. Esse mecanismo, embora necessário para garantir os princípios da administração pública, também tem o efeito de inibir a adoção de medidas administrativas criativas e, ainda que visando melhoria da produtividade, pode caracterizar improbidade administrativa.

Outros fatores também influenciam a eficiência, como a alternância na ocupação dos postos de poder, que é imprescindível num regime democrático, mas tem como efeito colateral que diretrizes e ações de uma gestão eleita sejam muitas vezes inteiramente desfeitas e refeitas de maneira oposta pela gestão eleita seguinte, seja por um posicionamento político-ideológico antagônico, seja por se priorizar a disputa partidária em detrimento do real interesse público, ou mesmo por simplesmente adotar soluções de gestão distintas. Neste panorama, os agentes públicos da esfera administrativa, embora com o papel de zelar pela eficiência e demais princípios administrativos, devido aos vínculos hierárquicos, podem acabar submetidos a uma situação de eterno retrabalho. Aliás, devido a seu dever de zelar pelos princípios administrativos, os agentes públicos da esfera administrativa (servidores estáveis) são normalmente encarados como obstáculo à livre atuação do corpo político, papel que os servidores administrativos não estáveis receiam exercer devido a uma maior fragilidade em seu vínculo de trabalho.

Tal estabilidade, todavia, é também objeto de críticas freqüentes da sociedade, pelo entendimento equivocado de que sua função seria a de beneficiar o servidor público e, embora em parte isso acabe acontecendo indiretamente, a real função para a qual foi concebida é a de proteger o servidor de eventuais pressões políticas ou de interesses particulares, assegurando a continuidade do trabalho em prol do interesse público. É importante se esclarecer que esta estabilidade não é irrestrita, no entanto, sendo perdida em casos de improbidade administrativa ou situações de interesse público excepcional, podendo levar à exoneração.

No que se refere à remuneração, geralmente alardeada como excessiva, aposentadoria integral e transmissível a filhos, e ainda uma longa série de benefícios, há que se dizer que de fato existem, mas limitadas quase que exclusivamente ao topo da pirâmide do funcionalismo, como a cúpula do judiciário, do legislativo, do executivo e do serviço militar. Quanto ao restante do funcionalismo, a situação é bastante irregular entre os diversos órgãos da administração, sendo distinta nas esferas federal, que em alguns casos ainda guarda parte dos direitos do passado, sendo bastante reduzida nas esferas estadual e principalmente nos municípios, nos quais, no outro extremo, chega-se até mesmo a situações de servidores remunerados por valores inferiores ao salário mínimo nacional e sem quaisquer benefícios. No que se refere à aposentadoria, que até o ano de 2004 era integral e recebida paritariamente à remuneração dos servidores na ativa (as chamadas paridade e integralidade), desde então deixaram de ser devidas aos novos ingressantes no serviço público da base do funcionalismo e passaram a ter seus cálculos e a maior parte das regras gerais pareados com a previdência geral.

Em outra frente, as críticas tantas vezes levantadas de que haveria um inchaçoda máquina pública no Brasil, com servidores públicos em excesso, não leva em conta dados concretos. Segundo relatórios disponibilizados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE – denominados Government at a Glance 2019 e Government at a Glance Latin America and the Caribbean 2020, que representa o percentual médio de servidores públicos em relação ao número total de empregados nas Economias que elenca, a média global de servidores públicos em relação à população empregada, calculada pela OCDE, é de 17.88%, estando a Suécia na liderança, com 30.26%, os EUA figurandoum pouco acimada média da OCDE, com 15.89%, e sendo o Japão, por sua vez, o país com a menor quantidade de empregados públicos, com apenas 6.09% em relação à população total empregada. O Brasil figura, conforme aponta a OCDE, com uma taxa de 12.5% de servidores públicos em relação à população empregada,ficando demonstrado que o Brasil está muito abaixo da média da OCDE para esse indicador, tendo uma taxa menor até mesmo que os EUA, que é normalmente apontado como referencia na redução do tamanho do Estado.

 

 

 

Conclusões

Embora sejam justificadas boa parte das críticas a problemas nos serviços prestados pelo Estado aos cidadãos, para que possam ser efetivamente identificadas suas causas, responsabilidades e para que se proponham soluções mais efetivas e menos demagógicas, se faz necessário um diagnóstico aprofundado, passando pelo entendimento da forma de funcionamento da máquina pública e da legislação que a regula, sua estrutura hierárquica, situações de desvirtuamento das funções do Estado, faltas éticas, entre outros aspectos, em especial no que se refere ao desrespeito aos princípios da administração Pública. No que se refere ao Funcionalismo Público, não é adequado rotular todos os servidores como ineficientes, assim como também não seria cabível o contrário. Mas, para os casos de ineficiência, embora haja uma crença indevida na sociedade que não, a legislação prevê mecanismos de exoneração daqueles servidores que não cumprem com suas obrigações. Todavia, a colocação em prática destes mecanismos requer agentes políticos preparados e qualificados, assim como seus indicados aos cargos da alta administração. No mesmo sentido, cabe à sociedade em geral compreender que o exercício da cidadania não se encerra no voto, mas se estende à organização coletiva e à utilização incessante dos mecanismos de controle disponíveis.

 

Referencias

 

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

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